Maior escândalo de corrupção no futebol, “Fifagate” completa 10 anos

Esquema de corrupção generalizada na Fifa levou ao indiciamento de mais de 30 réus, incluindo ex-presidentes da CBF; condenações nos EUA correm o risco de revisão.

O relógio marcava 7h30 da manhã. Parecia uma quarta-feira normal em Zurique, mas naquele dia a recepção do luxuoso Hotel Baur au Lac virou cena de filme de cinema. À paisana, agentes do FBI e oficiais da polícia suíça subiram até os quartos em busca de mais de uma dezena de membros da cúpula da Fifa, para desarticular o maior esquema de corrupção da história do futebol. O escândalo do “Fifagate” completa 10 anos nesta terça.

A polícia da Suíça prendeu naquele dia sete dirigentes ligados à Fifa, a pedido da Justiça dos Estados Unidos, acusados de corrupção e vários outros crimes, como extorsão e lavagem de dinheiro. O ex-presidente da CBF José Maria Marin foi um dos detidos. A operação em Zurique foi o desfecho de uma investigação do Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos, o famoso FBI, iniciada em 2011, que revelou a corrupção generalizada na Fifa, de mais de duas décadas.

A lista de denunciados tinha cartolas do Comitê Executivo da Fifa, das confederações da América do Norte e Central (Concacaf) e da sul-americana (Conmebol). Executivos de marketing dos EUA e da América do Sul foram acusados de pagar mais de 150 milhões de dólares em subornos e propinas, em troca de acordos de direitos de mídia sobre grandes torneios de futebol, como Copa do Mundo e Copa América.

A denúncia inicial do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) citava nove dirigentes da Fifa e outros cinco funcionários. Ao final de todo o processo, mais de 40 pessoas foram indiciadas. Houve 26 confissões de culpa individuais.

Vários desses foram condenados, segundo o DOJ. O governo americano disse ao geque oito deles cumpriram pena. Três denunciados que não assumiram culpa encararam os tribunais, e dois foram condenados, um deles José Maria Marín. Ele voltou ao Brasil em 2020, após liberação da justiça norte-americana. Pelo menos 12 voltaram para os seus respectivos países sem encarar a Justiça dos EUA.

As escolhas dos países-sede das Copas do Mundo de 2018 (Rússia) e 2022 (Catar) também foram alvo de investigação.

a Fifa declarou em nota que passou de “uma organização tóxica naquele tempo, para uma entidade global de governança esportiva respeitada e confiável, focada em seu mandato de desenvolver o futebol em todo o mundo“.

A Fifa afirmou ter feito uma profunda reforma de governança e administração financeira, com foco em transparência. Novos processos e estruturas foram criados, como a linha de ajuda para denunciantes e auditorias independentes para os processos de escolha das principais competições de futebol. A sede de Copa do Mundo agora é definida em votação das 211 associações nacionais.

O ex-presidente da Fifa Joseph Blatter não estava entre os 14 indiciados inicialmente, mas renunciou ao quinto mandato menos de uma semana depois de o escândalo vir à tona. Ele alegou que a entidade precisava de uma reforma profunda. Blatter seria banido do futebol ainda em 2015, por oito anos, por conta de outro caso que também envolveu o ex-jogador Michel Platini, ex-presidente da Uefa.

Blatter foi suspenso por mais seis anos em 2021, assim como o ex-secretário-geral Jérôme Valcke, em caso relacionado ao pagamento de bônus a partir de 2010. Blatter e Platini foram absolvidos duas vezes da acusação de corrupção na Justiça, a última em março deste ano, na Câmara Extraordinária de Apelações da Corte Penal Suíça.

Acadêmicos, torcedores e organizações não-governamentais divulgaram nesta terça uma carta aberta sobre o tema, em que acusam a Fifa de ser pior governada hoje do que há 10 anos. O documento argumenta que as reformas promovidas pela entidade não a colocaram numa nova “era de governança responsável”, não abordaram as suas principais falhas estruturais, com destaque para a “dinâmica de poder profundamente problemática” entre o seu braço executivo e as associações nacionais.

— Dez anos depois do Fifagate, o que existe é uma mudança de quem está no poder, mas não da estrutura do futebol. Da estrutura política do futebol. O que nós vimos foi uma reforma, que tinha como objetivo aquele velho ditado: “Mudar tudo para que nada mude” — comentou o jornalista Jamil Chade, que estava em Zurique naquele 27 de maio, correspondente internacional e autor do livro “Política, Propina e Futebol”. Ele assinou a carta aberta de crítica à Fifa.

Marin, Del Nero e Teixeira indiciados

 

A primeira denúncia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos mencionava três brasileiros: o ex-presidente da CBF José Maria Marin; José Hawilla, ex-dono da agência de marketing Traffic Group; e José Lazaro Margulies, proprietário das empresas de transmissão Valente e Somerton.

Mais brasileiros foram acusados na segunda fase do processo, em dezembro de 2015: Marco Polo del Nero e Ricardo Teixeira, ambos ex-presidentes da CBF. O primeiro por receber propinas por contratos ligados à Copa do Brasil e à Conmebol. O segundo por suborno em contratos ligados a competições da Conmebol e da CBF. Eles foram indicados por conspiração para extorquir, fraude e lavagem de dinheiro.

Marco Polo Del Nero, José Maria Marín e Ricardo Teixeira, ex-presidentes da CBF no Fifagate — Foto: Editoria de arte

Ricardo Teixeira recebeu banimento perpétuo do futebol em 2019, por violações ao código de ética da Fifa, de acordo com investigação interna. Ele teria recebido R$ 32,3 milhões em propinas pelos contratos de transmissão da Copa do Brasil, Libertadores e Copa América.

O Tribunal Arbitral do Esporte negou o recurso da sua defesa em 2021. Ele também foi acusado pelo DOJ, em 2020, de ter recebido subornos para votar no Catar como sede da Copa do Mundo de 2022. A defesa de Teixeira negou na época as acusações sobre o Mundial.

a CBF para saber se houve algum tipo de punição aos ex-dirigentes da entidade envolvidos no “Fifagate”, que medidas foram adotadas pela confederação nos últimos 10 anos, para aumentar a transparência da entidade, como funciona a sua Comissão de Ética, e se houve alguma verba indenizatória por parte da Justiça dos EUA.

A CBF informou que a Fifa aplicou punições nos mesmos moldes para José Maria Marin, Marco Polo Del Nero e Ricardo Teixeira. Todos culpados por violar o artigo 27 do Código de Ética da entidade, referente à aceitação de subornos. A pena foi de banimento de todas as atividades relacionadas ao futebol de forma vitalícia, tanto em âmbito nacional como internacional, e aplicação de multa de um milhão de francos suíços.

Segundo a CBF, essa punição da Fifa torna desnecessária, “do ponto de vista prático e jurídico-desportivo”, a aplicação de uma sanção adicional pela confederação brasileira, já que a mesma está subordinada à entidade máxima reguladora do futebol.

A CBF instituiu em 2017 o Código de Ética do Futebol Brasileiro, que, de acordo com a confederação, traz dispositivos “claros voltados à promoção da integridade, transparência e prevenção de conflitos de interesses nas relações e na gestão do futebol brasileiro.

A Comissão de Ética da entidade, por suas vez, tem poderes para “instaurar investigações, julgar condutas e aplicar sanções em casos de violação ao Código, inclusive nos casos de omissão, conivência ou inércia“. O atual presidente da Comissão é Carlos Renato de Azevedo Ferreira, ex-desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O DOJ concedeu 201 milhões de dólares (mais de R$ 1,1 bilhão) à Fundação da Fifa para compensar as perdas sofridas com corrupção. O governo americano recorreu da absolvição de Hernán Lopez, ex-executivo do Full Play Group. Quatro corporações confessaram culpa no “Fifagate”.

Condenações do Fifagate sob risco

 

O atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou em meados de fevereiro uma ordem executiva de suspensão da aplicação da Lei de Prática de Corrupção no Exterior. Essa lei proíbe uma empresa ou pessoa com algum tipo de vínculo nos EUA de subornar autoridades estrangeiras como forma de se beneficiar no exterior.

Existe a preocupação de que o enfraquecimento dessa lei afete o combate à corrupção no esporte, e inclusive leve à revisão de condenações já sentenciadas do “Fifagate”.

— Não vejo um debate aprofundado sobre a mudança de cultura. Um grande impulsionador da corrupção são os conflitos de interesse. Essa velha prática de trocas de favores, que insiste em permear essas organizações, tendo em vista as conexões existentes em líderes indicados politicamente, e não com critérios de mercado. Defendo o estabelecimento de obrigatoriedade de programas de compliance como ferramenta essencial para os clubes e demais entidades esportivas — comentou a advogada Roberta Codignoto, especialista em Integridade.

Isso pode representar uma fragilidade na punição efetiva da prática de corrupção, fazendo com que velhos esquemas se perpetuem. Como as multas eram consideráveis, e o processo bem custoso, havia um receio de ser pego, o que pode diminuir com essa flexibilização “.